Se um cachorro amarrado não foge, ninguém por isso o considerará um companheiro fiel.[1]
O processo natural de todo homem e toda mulher é o casamento, a constituição de uma família e a continuação da espécie. Poderia aceitar esse pensamento como verídico, plausível e cabível se talvez tivesse em mãos uma varinha de condão ou os poderes da feiticeira, da antiga série, Samantha. Como não tenho nenhum deles e, detesto, jogar a sujeira debaixo do tapete, procuro encarar a verdade mesmo que ela me doa e me faça rever meus conceitos, não o do outro, cutuco a ferida até entendê-la.
Casados há 15 anos, com três filhos, Maria e João vivem uma vida, aparentemente, equilibrada. Eles fazem as compras do mês juntos, buscam os filhos na escola e dividem as contas. João é fiel, mas gosta de aventuras. João ama Maria. João se auto-intitula "homem moderno, diferente e libertário". Enquanto que Maria acredita piamente na fidelidade do marido, de que nunca, em momento algum, desejou outra mulher senão ela e, pensar nisso, seria quase a morte. Mas João, que é um homem esperto, faz tudo na surdina que é pra não magoar Maria.
Esse é o típico exemplo da maioria dos casais monogâmicos existentes nesse mundo a fora. E os papéis podem ser invertidos, não, necessariamente, é sempre João quem pula a cerca. A mentira do amor monogâmico é apregoado nas igrejas, nas escolas, nas esquinas e no trabalho. Paradoxalmente, é audível em filas de supermercado, de padarias, de bancos, a conversa – desde o analfabeto até o mais intelectual – o orgulho, de muitos machos e fêmeas, das artimanhas acumuladas. Os homens "porque, de fato, merecem", as mulheres dizem e os homens, "porque elas pedem". E ficam ambos rindo, de peito estufados, cheios de si, por saborearem o prazer proibido.
Fica intrigante numa novela global, mas na realidade é patético! Tente ver de fora: duas pessoas cheias de vida, de energia, uma de frente pra outra jurando amor eterno. Eterno! Não é um contrato por dois anos, mas, sim, um contrato para o resto da vida.
"Ninguém, em seu juízo perfeito, falará de amor quando um homem possui uma mulher de pés e mãos amarrados e indefesa. Nenhum homem decente ficará orgulhoso com o amor de uma mulher que ele compra com alimentação ou influência de poder. Nenhum homem correto tomará um amor que não for dado voluntariamente. A moral forçada do dever conjugal e da autoridade familiar é uma moral de covardes tementes da vida e de impotentes incapazes de conseguir pela força natural do amor aquilo que pretendem conseguir por intermédio da polícia e do direito conjugal", já dizia outro grande sábio desse mundo conturbado, o psicanalista alemão Wilhelm Reich.
Família e monogamia são embustes da chamada "civilização moderna" para um status coordenado pelo poder patriarcal ditador. É, justamente, na base da socidade – a família – onde se concentram e aplicam o medo, a culpa e a repressão de todas as maneiras. Pais fingem para os filhos enquanto estes, desde pequenos, aprimoram suas próprias maneiras teatrais de se representarem e reagirem dentro da sociedade.
João e Maria seriam muito mais coerentes e apaixonados, pela vida e um pelo o outro, se reconhecessem suas fraquezas mais primitivas e erros. Sim, todos nós erramos e deveríamos aceitar de bom grado e pedir desculpas. E os filhos, pequenos ou adolescentes, não deveriam ser usados como escudo ou desculpa por um fracasso. Todos nós fracassamos e recomeçamos. Carl Gustav Jung, psicanalista suiço, descreve: "De início era paixão, depois se tornou obrigação e por fim vem a ser um peso insuportável, uma espécie de vampiro a sugar a vida de seu criador". Não deveria ser assim. Mas ainda temos o livre arbítrio e a oportunidade do agora. É justamente essa segunda chance que a vida nos proporciona todos os dias, a de renovar, jogar fora lixos, pintar a casa, mudar de cidade, de guarda-roupa, cortar o cabelo, amar novamente, pôr o ponto final, fazer um caminho de ida ou de volta, totalmente, diferente do habitual.
Se queremos, verdadeiramente, constituirmos uma sociedade justa, igualitária, saudável e construtriva precisamos tirar as máscaras e assumir que somos humanos, com desejos primitivos, controláveis ou não, isso é individual, mas de opiniões e atitudes transparentes, verdadeiras e honestas.
Notas1. REICH, Wilhelm. A revolução sexual. Tradução: Ary Blaustein. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2ª edição, 1974.
Texto de Cristina Livramento Jornalista e escritora radicada em Campo Grande. Especialista em assuntos da carne.